Junho, mês dos namorados. O sol brilhava solitário no céu azul das épocas mais frias. O dia era o décimo primeiro. O local era um ponto de ônibus numa das travessas ali perto da Consolação. Esses lugares que se faz até esquecer o quão horrível é a cidade. No ponto de ônibus encontram-se Kelly e Astolfo. Ela fala ao celular, ele olha para o relógio.
– … Diz que é a Kelly!
O rapaz, que até agora não a tinha notado, fica indisfarçavelmente boquiaberto. Era a visão mais bela que jamais tivera em todos os seus anos de vida. Mas… São demais os preconceitos nesta vida e o nome Kelly lhe pareceu pouco inteligente, loira demais, muito materialista e, por ser um nome, informação herdada, concluiu que não só ela era pouco esperta como toda a sua linhagem também. Então, para si mesmo admitiu: “zebra”.
A garota, por sua vez, terminando o diálogo ao celular, dispara de forma casual:
– Sim, sim, eu posso apresentar aquele mestrado um mês antes sim! Afinal, já o terminei faz uma semana! É, é, ciência patafísica é meu assunto favorito, amigaaa…
Astolfo sente cãibra no pescoço. É um sinal óbvio de paixão, observado por ele mesmo desde os tempos de primário. Tentou mexer a cabeça. Nada. Era paixão mesmo. A dor não o agradava e assim tentou mais algumas vezes se mexer, o que chamou a atenção da linda garota.
Kelly era jovem, linda, inteligente e, ainda por cima, usava meias quando dormia sozinha. O que infelizmente vinha acontecendo há algum tempo já. E foi pensando nisso que ela notou o rapaz em seu ritual de relaxamento do pescoço. Se pudéssemos ouvir seus pensamentos, seriam “Que gracinha de rapaz! Que ar culto ele tem! Vou perguntar as horas”. Mas… São demais os preconceitos nesta vida e os óculos de tartaruga e a meia levantada lhe pareceram muito pouco apropriados. Então, conclui para si mesma: “nerd”.
Mas Astolfo, apesar de assistir à novela da tarde, não era de todo alienado e notou que a musa de sua vida movera-se um milímetro em sua direção. Será que ela estaria indo em sua direção? Será? Não! O que uma beleza dessas iria querer com ele?
Bom, a estonteante jovem também tinha suas dúvidas e, apesar de ter pensado seriamente em ir lá falar com o menino com mau gosto para se vestir, resolveu não ir por achar que ele pensaria que ela era muito atirada e talvez até, baseado na sua teoria desenvolvida na época do colegial – época também que ela usava aparelho, óculos e camisetas do Metallica -, toda menina atirada era também… burra!
É, meu caro Astolfo, quantas dúvidas cruéis um cérebro bem instruído pode nos trazer, não é? Tanto estudo, tanto interesse pela psique humana para no final conseguir lembrar apenas do maior de todos os chavões: “O cachorrinho tem telefone?” Pois é. Mas a lógica acima de tudo, e ela não tinha um cachorro. Pelo menos não ali.
Os anos com a psicóloga adiantaram muito e fizeram a menina bobinha se transformar na joia que agora observamos no ponto do ônibus a pensar se aquele homem de pescoço duro teria realmente se virado para ela. Mas foram os conselhos das amigas de oitava série que fumavam escondido que preponderaram quando ela, num ato de desespero, tirou seu casaquinho de crochê e arrumou o cabelo de forma muito – e repito – muito atraente, enquanto pensava “Vou lá e digo: Tudo bem? Que horas são?”.
O torcicolo de Astolfo constituía um pescoço duro. Ao ver a atitude de Kelly… Imaginem o quê! Nada poderia parar aquele homem. É isso, ele tinha que ir lá! “Viro e pergunto: sabe a que horas passa o ônibus!”
E foi nesse momento, naquela véspera de dia dos namorados, num bairro bonitinho, num dia de céu azul, que Astolfo e Kelly se conheceram. Ambos se desejavam. E se fossem conhecidos, saberiam que não era só fisicamente. O diálogo foi como segue:
– Você sabe… – soltou ele.
– Tudo bem… – gaguejou ela.
– … a que horas… – o pescoço duro.
– Que horas são… – a boca seca.
É. E foi tudo. Pelo menos por hora.
Ah, são tantos os medos! São tantos os preconceitos. São tantas as desculpas esfarrapadas. Ele poderia jurar que era o maior dentre todos os otários do mundo, se não tivesse lhe ocorrido antes que ela devia se achar muito boa pra ele – um cara num ponto de ônibus! Ainda mais com aqueles óculos de reserva que estava usando… Também, quem mandou perder o Boss? A culpa era dos óculos, e ele os tirou furiosamente do rosto.
E ela? Ela ficou com vergonha de saber que havia feito tantas aulas de dicção para nada… Isso lá é verdade. Mas palavras como beldroegas e cretino, tão carinhosamente aprendidas do dicionário, foram substituídas por outras que não são de bom tom reproduzir aqui. Mas no geral foi mais ou menos isso: “Bobo! É mesmo um nerd! Tira os óculos como se fosse “o” sabe tudo! Tolo, aposto que nem sabe o que é patafísica!”
Nem todos os livros de filosofia poderiam responder onde estava o ônibus que ele esperava e por que a lei de Murphy se aplicava com tanta constância em sua vida. E foi isso mesmo. As palavras que eram para ele escapuliram…
– Êta lei de Murphy!
– Quê? – pergunta ela, recolocando a blusinha delicada de crochê.
– Não! Não, nada!
Enquanto se abotoava ela pensou no que foi que ele tinha dito. Lady o quê? Smurf? E se ele fosse um daqueles nerds tarados por personagens de desenho animado? O visual conferia. Foi inevitável olhá-lo de forma desconfiada.
A situação já era hecatômbica e ele não suportava mais o pescoço, e aquela garota estranha que ficava olhando pra ele assim! E se ela for… Ah, não! Ele lá, todo-todo para uma possível… Vulgívaga!
Era demais para os dois, eles tinham que ir embora. Dane-se o ônibus, andar faz bem. Os dois saem um na direção do outro, fazendo com que se trombem.
– Desculpe! – ela segurando a bolsa contra o peito.
– Desculpe eu! – mãos para trás.
Um pouco mais distantes foi inevitável:
– Tarado!
– Vagabunda!