Sabrina.
Não que sua mãe tivesse lhe dado esse nome, mas era assim que a moça dizia quando se apresentava, desde os catorze anos, desde que começara a ler romances de bolso vendidos em banca de jornal. Agora já nem sabiam seu nome de verdade e ela mesma muitas vezes esquecia. É comum.
Sabrina ia todo dia para seu trabalho de ônibus e, ao se aproximar, lembrava como achava divertido o letreiro que tinha como letra inicial algo que poderia ser lido tanto como H como M. Ela chegava às 23h e ficava até 6h, então a outra atendente chegava e a rendia. Seu trabalho era simples – pedir documentos das pessoas que chegavam de carro, descrever assim por cima os quartos se perguntassem, e entregar a chave do que nas próximas horas seria um ninho de amor ou apenas um antro pecaminoso – dependendo da sua crença.
Sabrina trabalhava muitas vezes acompanhada de Irene (que se chamava Irene mesmo, dizia ela) e, algumas vezes, de Dona Márcia. Porém, nessa noite a portaria estava totalmente sob sua responsabilidade até a 1h. Irene estava doente, apanhara “uma friagem brava agora em junho” e Dona Márcia ajudaria em outro departamento até esse horário. Acontecia às vezes, e Sabrina até sentia um pouco de medo ficar ali, naquela cabine durante a noite, numa parte rebaixada da via, olhando para o matagal e a construção interditada do outro lado da estrada. A estrada à noite era bem escurinha em volta e bem iluminada debaixo das lâmpadas, mas principalmente solitária.
Sabrina atendia alguns telefonemas pedindo para fechar a conta do quarto, lia um pouco dos romances de bolso vendidos em banca de jornal e, claro, atendia os clientes que entravam e saíam.
Essa noite era uma terça-feira e Dona Márcia ainda não tinha chegado para lhe fazer companhia, apesar de já ser 1h15. Sabrina ligou para o escritório e Seu Borba foi muito grosso com aquela voz de safenado dizendo que Dona Márcia “já ia, já, já”. Ao desligar o telefone, ouviu um clique atrasado. Mas um clique quando se coloca o telefone no gancho é apenas um clique – então, voltou à leitura.
Um carro passa, o vento bate e outro clique, dessa vez obviamente do lado de fora da cabine, mas ora bolas, estamos numa estrada e pedrinhas rolam, voltemos a leitura.
Outro clique.
Bom, que diabos é isso? Sabrina olha para a estrada e o mato balança com o vento.
Um carro chega apressado. Os clientes ali sempre estão apressados. É quase como ir ao banheiro – quando chega a hora, chega a hora. “Um quarto, por favor!”, disse o moço embriagado sem ter bebido. Ao passarem e a cancela baixar, um sujeitinho pequeno, usando um casacão e gorro, se aproxima a pé. E ele vem chegando, mas não deu para ver de onde.
– Um quarto, por favor.
– O senhor está sozinho?
–
– Olha senhor, aqui só funciona com quem está de carro ou, no mínimo, acompanhado.
–
Sabrina tenta ignorá-lo e voltar a sua leitura.
Clique.
– Senhor, é contra a política da casa receb…
Clique.
Era péssimo, seus pés se contraíram imediatamente. O clique do telefone, o clique da pedrinha da estrada, o “clique” vinha do homem encapotado a um metro de distância dela.
CLIQUE!
Esse clique fora bem alto. Bem alto mesmo.
– Olha a-aqui, meu senhor, se o senhor não sair daqui vou chamar os seguranças do estabelecimento!
CLIQUE!
Meu Deus do céu, será que as câmeras de segurança não viam o homenzinho ali, ao lado dela, ameaçador, encarando-a vidrado, fazendo aquele som horrível.
– Olha…
Ele se aproxima mais com uma passada, Sabrina chega a dilatar as narinas e levantar a parte do lábio superior. Ela pode sentir o suor nas costas e aquela tensão ali em cima, depois da testa.
– Um quarto, por favor. Um quarto, por favor.
Sabrina agarra no peitoral da cabine pela parte de dentro, seu pescoço dói e a boca seca. Nada disso pode estar acontecendo, não pode estar aconte…
CLIIIIIQUE!
Toda a lógica some de vez. Ela se abaixa dentro da cabine, suando pelas têmporas, pelos lábios, as bochechas… Será que não poderia chegar? Ninguém? E a segurança não via isso? Será que ele a agarraria se ela levantasse a mão para telefonar? Será que ele estaria chegando mais perto?
CLIIIIIIQUEEEEEE!
– Um quarto, por favor.
Era impressão ou a voz dele era cada vez mais úmida e… Próxima. Sabrina fechou os olhos apertados, apertou as mãos contra a parede e tencionou os dedos do pé dentro dos sapatinhos de salto alto. Ela sentia falta de ar, certamente, pois estava chorando muito e não havia notado. Ela só queria alcançar o telefone.
Se Sabrina estivesse de olhos abertos ela teria visto a sombra do braço do homem úmido entrando pela janela e teria visto também suas mãos enrugadas e secas quando a manga do casaco enroscou na janelinha da cabine.
Mas ela não teria visto muito mais do que isso.