O carro novinho que ganhara de aniversário parecia não melhorar em nada a forma com que Eduardo Filho dirigia naquela estrada mal iluminada e encharcada.
“O problema está certamente entre o banco e a direção!”, diria seu pai. “É por isso que lhe dei um carro popular!” Velho muquirana! E para piorar sua total inabilidade a chuva caía cruelmente do lado de fora do carrinho mil.
O engraçado é que sempre se sentira tão seguro dentro de um carro e hoje, isso! Sentia que a porta ia cair, o vidro escorregaria para dentro e ele estaria ali, exposto a toda a chuva que Deus permite cair do céu. Mas e daí? Seria apenas água. Tinha algo mais incomodando Eduardinho. Seria a noite? Seria o fato de a estrada estar totalmente escorregadia? Seria por estar dirigindo fora da cidade dois dias depois de ter tirado a maldita habilitação? Seria o jantar em família que o aguardava? “Aquele monte de caipiras perguntando da minha vida!” Seria aquela árvore com formato de gente carbonizada? Opa! Dudu já vira aquela árvore alguma vez antes, na verdade já vira aquela árvore umas três vezes antes! Sim, era isso que o deixava nervoso naquela noite: estava perdido, rodando em círculos.
O que fazer agora? O celular! É só ligar para o Sr. Eduardo e tudo ficará resolvido! Ele vai certamente reclamar por ser interrompido, reclamar que o mapa não é para ficar no sofá da sala, mas… E daí? O celular! Seu coração já mais tranquilo lhe permite até se recostar no banco. Mas é difícil dirigir e falar ao celular ao mesmo tempo! Se bem que estacionar aqui é loucura! Diminuiu a velocidade. Pronto, em breve estará em contato com seu chato porém prestativo pai. Nada como ser um filhinho de papai.
Até que não é tão difícil dirigir dessa forma. Mas cadê o sinal? E o que aquele tronco faz no meio da estrada? Tarde demais. Desviar o salvou de destruir totalmente o carro. Mas aquele barulho de lata batendo o pai iria notar no exato momento em que entrasse pela porteira da fazenda. Lá estava nosso Eduzinho abraçado na direção outra vez, quase chorando, quando, do nada, sua sorte parece mudar.
Uma placa! Uma placa indicando uma cidade! Quem se importa se o nome da cidade nos lembra algo desolado ou perdido? Não há cidade com um nome desses. Poderia ser outro nome e a chuva atrapalhou a leitura. Mas é uma cidade e lá tem que ter um hotel. Um aconchegante, seco, seguro hotel de interior, com um monte de caipiras, um monte de caipiras iguais a sua família. Um aconchegante hotel familiar. Com telefone.
O assustado filho de Sr. Eduardo entra onde a placa indica. Não demorou muito, uns dez minutos, para chegar à cidadezinha. Como era de se esperar, composta por uma pracinha bem cuidada, uma igrejinha reformada há pouco tempo, o coreto com flores ao redor, uma farmácia já fechada, “típica cidade do interior” e um hotel. Um hotelzinho, mas ainda assim, um hotel. Ao encostar o carro à porta do “Grande Hotel”, notou que os dois pneus do lado esquerdo estavam sobre a calçada. Realmente seu saudoso pai estava certo, o problema era entre a direção e o banco. A chuva não melhorara nada. Mas em breve alguém do hotel viria buscá-lo com aqueles enormes e acolhedores guarda-chuvas. Em breve. Talvez não nesse hotel. Como se não bastasse a maldita viagem, ter se perdido, estragar um carro com dois dias de uso, agora terá que tomar um banho até entrar no hotel. “Que se danem as malas!” Hoje Duzinho irá dormir pelado enrolado no maior número de cobertas possível.
Ao entrar totalmente molhado naquele ambiente mal iluminado, ele pode ver uma tevê não muito nova cercada por poltronas de courinho. Assistindo à tevê, sentada no chão em posição de lótus, uma angelical garotinha de mais ou menos dez anos. Numa mesa um pouco mais atrás, perto da escada, encarando de forma débil um tabuleiro de xadrez daqueles pintados na mesa, havia um rapaz da mesma idade que ele. Um rapaz obviamente retardado. Sim, ele tinha algum problema mental. No balcão, lendo jornal, estava um velho, fumando de forma pomposa. “Meu Deus do céu…”, pensou, “onde foi que vim parar?” Será que ninguém podia ajudá-lo? Ele era um cliente!
Ao se aproximar, furioso, cansado e encharcado, Eduardinho bate o pé numa elevação. A topada foi a última gota d’água, literalmente. “Merda de cidade, merda de hotel! Por que é que vocês não vão todos para o inferno?” O retardado sorriu babando, o velho olhou com o canto dos olhos, a menininha angelical nem se mexeu, e essa foi toda a manifestação que aquelas pessoas tiveram. Ao pedir um quarto: “Não!”, o velho lhe disse com uma voz que parecia mais a de uma múmia, provavelmente resultado do cigarro. Sem entender, o jovem pergunta novamente e novamente ouve “Não!”. “Como assim?” “Não é não. Vai embora!”, disse o velho sem tirar os olhos do jornal.
A essa altura nada mais fazia sentido para Edu. Tudo era muito bizarro. Como assim, não querer um cliente? Eduardo tentou argumentar, mas aquele velho seboso não arredava os olhos do jornal. “Não aceitamos pessoas que diminuem nossa cidade ou qualquer coisa dela!” As palavras trocadas em seguida não ajudaram em nada, mas pelo menos o velhote tirou os olhos da leitura e até se levantou para discutir. O demente começou a esmurrar a mesa e a garotinha virou a cabeça na direção da discussão. Falavam mais ou menos sobre ter orgulho da cidade e que, se ele quisesse dormir, que procurasse outro lugar. Nervosíssimo, o jovem perdido deixa o hotel xingando Deus e o diabo por nomes pouco religiosos e batendo a porta de vidro.
A chuva ainda caía pesada. Mas para que outro lugar poderia ele ir? “Merda de cidade! Merda de hotel! Por que é que eles não vão todos pro inferno?”, gritou no meio da rua. Bem, alguém ouviu isso. A garotinha e o rapaz retardado saem atrás dele usando um bom e acolhedor guarda-chuva de hotel. A garota era o ser mais puro que já pisou na face da Terra. Talvez por isso também fosse estranha. Contrastava com o resto das pessoas que ele vira até então. Ela chegou juntamente com o rapaz da síndrome e, a um metro de distância, disse: “Moço, se o senhor quiser, tem uma pensão logo atrás do hotel, descendo a rua e dobrando a esquina…” Dizendo isso, a garotinha sorriu e puxou o retardado: “Diz tchau pra ele, maninho!” A dupla dá adeus com as mãos e sai tranqüilamente de volta ao hotel. Eduardo agradece em voz alta, sem demonstrar a total gratidão interna – agora meio arrependido, com dó dos dois.
Direciona-se à pensão. No caminho escorrega nos paralelepípedos e cai. Obviamente esse não era seu dia. Chegando lá – só poderia ser ali -, vê a humilde porta do que antigamente fora apenas uma casa. Entra e olha ao redor. Não há ninguém. “Alguém aí?” Espera por mais alguns instantes entre a total desesperança e a falta de opinião completa. Uma senhora vem apressada, saindo por detrás da cortina de bambus que separava aquela salinha do resto da pensão. Uma senhora horrorosa vem fumando e se arrumando – talvez tivesse acabado de usar o banheiro. Gentil, mas ainda assim horrorosa. Onde ele já tinha visto aquele rosto antes? Quem se importa? A noite já tinha passado dos limites, tudo dera errado e ainda discutira com um velho que estava com os dois pés na cova.
Os dois se entenderam bem. A velha tinha uma voz muito esganiçada. Gentil, mas ainda assim esganiçada demais. Ele explicou como fora parar ali, quem o indicara – pulou a parte em que falou uma enorme sequência de palavrões para um velho de mais ou menos cem anos, mas o resto estava tudo ali. A velha pareceu meio indiferente as suas explicações, mas até agora ela fora a pessoa menos estranha da cidade – a não ser pelo seu DNA. Ela lhe ofereceu o que disse ser o melhor quarto. Na verdade ele não lembrava de ter visto mais nenhum. Tudo muito aconchegante, bem do interior. Comeu um belo jantar e foi deitar. “Acho que amanhã cedo vou lá ao hotel pedir desculpas, depois perguntar o quanto devo a essa boa velha!”, pensou, antes de deitar-se e dormir o sono dos exaustos… E de ter pesadelos muito estanhos nos quais o velho seboso se transformava na boa velha, e a velha carregava uma caixa de ferramentas, o que acabava salientando as varizes de sua perna. As varizes e os pelos. Tudo muito horrível. “Deve ter sido a gordura!” Comida do interior. Gente simples que ainda não descobriu os males que isso faz.
No meio da noite começou a ouvir um som contínuo e cadenciado, algo como marteladas. Mas estava muito escuro e não conseguia ver nada pela janela. Sentiu uma leve dor de estômago: “Definitivamente, foi a gordura!”
Ao acordar notou que ainda estava tudo escuro. A porta estava trancada, a janela estava trancada. Eduardo Filho tentou abrir, tentou achar uma saída, gritou, bateu, tentou usar o celular, mas estava sem conexão, seu estômago doía cada vez mais… Era fome. Há quantas horas estava ali? E lá de fora ainda ouviu uma voz fininha de criança falando com alguém: “É, é o homem daquela noite!” Alguma voz, com dificuldade, grunhiu alguma coisa. “O Vovô não gosta de gente que desmerece nossa cidade!” Novamente um grunhido débil. “Não importa se foi na semana passada ou não!” Novamente a voz torta. “Shhh! Ouviu isso? Ele está chegando! Vem, vem!” Outra pessoa chega com uma voz rouca – voz de múmia, provavelmente alterada pelo cigarro: “Queridinha, você viu a anágua do vovô?” O rapaz, totalmente desesperado, mas fraco pela fome, só tem um pensamento na cabeça: “Merda de cidade, merda de hotel! Por que é que vocês não vão pro o inferno?”