Devaneio

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Seu amigo acabara de estacionar em frente à casa. Viera deixá-lo após uma festa. Devia ser umas três horas da manhã, estava cansado, não muito. Despediu-se e, agradecendo pela carona, bateu a porta do carro, já pensando no que há pouco acabara, já o passado, para se arrepender terminado o calor da comemoração. Aliás… Os pensamentos do que poderia ter feito já o haviam alcançado, pois no longo caminho de volta o silêncio produzido pelo sono e a maldita melancolia pelo “final da festa” agiram como um atalho para tal sentimento.
Ouvia o carro virando a esquina e a fechadura do portão se trancando simultaneamente com o movimento de sua mão.
Aqueles olhos. Logo ali na esquina de sua casa. Lá estavam aqueles olhos luminosos como um flash em fotos amadoras. Novamente eles olhavam e rapidamente piscavam. Novamente. Gente não era.
Atravessou o pequeno quintal, do muro da entrada até a porta da sala. Outra olhadela para a esquina. Os olhinhos lá. Toda noite agora a mesma coisa. Seria um cachorro? Muito grande para um gato.
Fizeram-se mecanicamente os movimentos – abrir, fechar, trancar, pendurar as chaves, tencionar os ombros, relaxar tudo. Bocejo seguido de um resmungo falho para lembrar, após tanto falar inconscientemente, de que era mesmo ele que acabara de conversar, comer, olhar e beber numa festa de pessoas que nem sabia bem se conhecia. Olha pela janela antes de fechar a cortininha. Os olhos brilhantes sumiram.
Meio decepcionado com tudo, olhou para o chão com o habitual corpo apoiado em uma perna, mãos na cintura e postura caída, vontade de esquecer tudo e dormir bem.
Mas esquecer o quê? Ele não fez nada! Ninguém fez nada para ele! Esse é o problema – ninguém fez nada, não aconteceu nada, foi a mesma coisa de sempre. As pessoas, os assuntos… Talvez algumas músicas fossem inéditas. Até as roupas eram uma variação de muitos anos atrás! Para dizer a verdade, agora que percebera, esta era uma comemoração anual, e já faz duas ou três comemorações de igual motivo que ele saiu do mesmo lugar, chegou ao mesmo lugar e que, nos mesmos lugar e pose, pensa o mesmo. Exceto pelos olhos de flash.
Levou as mãos à face para se certificar de que era isso mesmo. Depois olhou para a porta de seu quarto – que se pode ver da sala quando se passa pelo corredor que leva à cozinha, cuja porta está sempre aberta.
Após mais um precário relaxamento dos ombros, caminhou até lá, passando a mão na nuca, já se esquecendo dos pensamentos inconformáveis de há pouco e já se lembrando de, na próxima vez, não usar mais aqueles sapatos. Acabaram com seus dedos.
Antes de entrar no quarto, porém, teve a derradeira sensação de ver olhinhos na inocente penumbra de sua cozinha.

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