Dormir, acordar… Realidade, sonho… É tudo muito vago, o tempo não significa nada – os momentos bons, os ruins. Nada faz muito sentido para mim. Ou para ele. Se fosse ele escrevendo, ao invés de ‘ele’, vocês leriam ‘eu’ e ao invés de ‘eu’, leriam ‘ela’. Não se preocupem. Eu explico.
Meu nome é Anna Bonfim. Sempre fui uma estudiosa das artes, sempre preferi os livros, o teatro, o cinema, a música. Saudável, mas com cuidados requeridos.
Ele, Otto Faustino, sempre preferiu o errado. Nunca se fixou a nada, a ninguém ou a lugar nenhum; nunca teve nenhum cuidado, entregue a tudo.
O meu problema com ele vem do fato de sermos a mesma coisa.
Não pensem que o que se segue é mais uma história de Jekyll e Hyde. O caso que aqui apresento é semelhante, porém de muito maior gravidade. Eu garanto.
No caso da história, o médico criou uma poção que transformava seu corpo, índole e maneira de ver o mundo. Com o tempo, a poção deixou de ser necessária e o lado monstro aparecia quando queria. Algo parecido com mais uma dúzia de personagens. As personalidades escondidas existiam em momentos diferentes, como um Super Homem ao avesso.
Era fácil acabar com o mal: eliminando um dos dois, ambos desapareceriam. Os fatos relatados nas histórias eram como um castigo ou um prêmio, como uma moral a ser aprendida. “Nunca tente ser o que você não é” ou coisa que o valha. No meu caso, não.
Somos a mesma pessoa e vivemos ao mesmo tempo. Só há uma divisória entre Anna e Otto: ele é eu quando durmo, e eu sou ele quando ele dorme. Não habitamos a mesma realidade. Somos contemporâneos, mas vivemos em realidades paralelas. Não fizemos nada para que isso acontecesse.
Até cinco anos atrás o mundo era um e tudo era como é para todos nós. Por essa data, quando ia dormir, ao invés de dormir, acordava Otto Faustino. Era como se ele tivesse sonhado que era eu.
Toda vez que ele sonha que sou eu, na verdade sou eu mesma. E toda vez que eu sonho ser ele, sou ele mesmo.
Quando ele acorda tenho certeza de que Anna Bonfim é um sonho idiota.
Até cinco anos atrás o mundo era um e todos os fatos ocorriam normalmente, como acontecem para todos nós. Por essa data, quando ia dormir, ao invés de dormir, acordava Anna Bonfim.
O meu mundo, de cinco anos pra cá, é totalmente diferente do mundo dele.
Impossível dizer qual é o real; dependendo da pessoa que sou, esse é o mundo real, e tanto eu quanto ele não estamos dispostos a abrir mão da realidade, e nem que tivéssemos essa intenção, nunca conseguiríamos. Como se muda um mundo inteiro? Como se apaga um passado, sendo que ele não é um passado – é a realidade cobrando você?
Já tentei ficar acordada, mas minha saúde começou a despencar.
Já pensamos em cometer suicídio. Mas como seria se morresse… Seríamos quem para sempre?
Gosto da minha vida e ele gosta da dele. Já tentei ir a sua casa, mas ela não existe em minha realidade, e posso garantir que o local onde vivo não existe na realidade dele.
Agora já tomei dois tipos de remédios para ficar acordada – minha saúde está piorando. Mas preciso me cuidar, pois se morrer corro perigo de ser um assassino para sempre.
Mais cedo ou mais tarde ele vai acordar e partir para sua vida podre. Já cheguei a desejar a morte de Otto, mas como desejar a morte de alguém tão próximo, de alguém que é você?
Minha última esperança é que ele mude ou que eu mude. Mas quem é que muda nesse mundo?