Noite. Frio. Nenhuma estrela. Um rapaz de andar pouco convicto acaba de descer de um carro. Acena para a pessoa ao volante, disfarçando o desânimo, e fecha a porta. Fica olhando o Snoopy tenista grudado por ventosas no vidro traseiro.
Boca seca, dor de cabeça. A ressaca é óbvia. Ele acaba de ser deixado num ponto de ônibus. Olhar sonolento, testa enrugada, roupas úmidas, sapato encharcado, calçada estreita. Atrás, um muro chapiscado muito alto e meio sujo de barro da última inundação. A rua média, postes de luz a cada vinte metros. Dois funcionam mal, um oscila. Subindo na calçada, encara o outro lado da rua. Algumas árvores peladas e mato, um grande matagal. “Quem mandou aceitar carona!”, pensava com esforço. Acabara de voltar de um churrasco. Com a maior boa vontade do mundo, o dono da casa quis ajudar arrumando alguém que fosse para os seus lados. O alguém escolhido era uma tia meio jovem de um amigo seu que tinha passado o dia todo – ou ao menos parecia ter – olhando para ele com o rabo dos olhos. Isso o ajudou bastante a não pensar muito na hora de aceitar. Isso e tudo o mais que bebera. No caminho ela fora pouco receptiva. Não dissera nada sem ser perguntada, e o que dissera havia sido monossilábico. “De dia aquele sol e agora esse frio!”, “É!”. Nenhum olhar com o rabo do olho. Constrangedor. O que restara a fazer era assistir pela janela embaçada a estrada passar. “Acho que desviou um pouco… Mas, se me deixar num ponto de ônibus, eu me viro!” Notara que o caminho estava errado. “Tem certeza?”, perguntou a jovem tia sem olhar diretamente, com a voz levemente pastosa por ter bebido algumas também. O que é que poderia fazer agora? “Pode deixar!”
Agora estava ali no meio do nada, sabe-se lá em que região da cidade. Segunda maior cidade do mundo. “Onde estariam os milhões de habitantes agora?”, pensou, antes de olhar para seu relógio, que mostrava 11 horas desde o meio-dia, quando saiu de casa. Ou teria sido quando o jogaram na piscina? Árvores feias, fios de eletricidade cheios de emaranhados de tênis e rabiolas. Até uma imitação de Suzy tinha sido pendurada ali… Pelo pescoço, parecia. Não.
O murão atrás era certamente curvado para o ponto. Às vezes parecia que vinha algum som de lá de trás. Que seria aquilo? Filme pornô? Era comprido para a direita e, para a esquerda, dobrava a esquina. Aquele ponto de ônibus deveria ser uma piada de mau gosto. “Quando é que um ônibus vai passar aqui?” Finalmente alguma luz. Faróis. “É um ônibus, é um ônibus!” Não era. Um caminhão velho de feira. Será que queria ser visto por aquele motorista? Felizmente o ponto o cobriu da vista daquele motorista perigoso que, na verdade, era um pobre senhor com sua pobre senhora, duas criancinhas pobres e um monte de crucifixos presos ao espelho retrovisor junto com mais uns dez santinhos.
Não sabia nenhuma prece, mas sabia rezar. Que barulhos eram aqueles que vinham de trás do muro? Seria um açougue? Aquela árvore se mexera e isso não era uma pergunta. Direita: longa rua por onde viera. Esquerda: quem sabe? Não sabia e não iria tentar descobrir. Mais um farol meio xoxo. “Valeu, Deus!” Lá vem um ônibus. Diz um palavrão e dá sinal.
Realmente é um ônibus. Não dá pra ler o destino de tão escuro e sujo, mas quem quer saber o destino? Qualquer lugar é melhor que ali. Que bairro seria aquele? O ônibus é daqueles brancos, genéricos. Não dá pra ver a cara nem do cobrador e nem do motorista. Só a silhueta e as mãos. O motorista parece ter vindo ao mundo com a ajuda de um fórceps. O cobrador tem o maior queixo já visto. “Deve ser pra compensar o que falta no motorista…”, pensa, já com a cabeça mais leve e um humor positivista idiota.
Muito tempo depois o ônibus não chegara a lugar nenhum. Muitas vezes havia passado por perto de luzes e movimento, mas nenhum local conhecido ou seguro. Pelo menos a seu ver. Agora já faz meia hora que está tudo escuro e o cenário não parece melhorar. Perdido novamente. “Não é nada, vá! O que pode ter de tão ruim em perguntar?” Levanta-se. No caminho entre o seu banco e o cobrador ele reconhece que vem agindo feito um bobo assustado e conclui que não deve beber nunca mais. Imagine pensar que aquela mulher estava querendo algo com ele. Ficar com medo de um muro!
Dirige-se ao cobrador e sua silhueta nem parece mais tão assustadora. “Oi, eu acho que peguei o ônibus errado, o senhor poderia me informar o destino deste ônibus quando volta?” Um pouco antes de liberar tudo o que havia bebido durante o dia nas calças – e talvez até o que comera -, ele ouviu uma voz sibilante vinda daquele queixo enorme: “Essssse ssssó vai, moçççço…”